Boto fé
.: Certa feita, estava eu em casa, triste da vida, desolado, sem saber a quem pedir ajuda. Numa outra vez, vivi um grande dilema. Tinha duas possibilidades, mas as alternativas iam, às pressas, cada uma por um caminho diferente, depois da bifurcação. Precisava correr para alcançar uma delas e, caso ficasse parado à beira das duas vias, perderia ambas as possibilidades. Não havia ninguém que pudesse escolher por mim e eu chorei. Numa terceira vez, estava tão feliz e de bem com a vida, que não me bastaria “mandar flores ao delegado”, “bater na porta do vizinho e desejar bom dia”, nem “beijar o português da padaria”*. Precisava agradecer a alguém, mas não identificava, sob o meu campo de visão, um causador para tamanha alegria. .: É bem verdade que eu estava na moda, e estar na moda, às vezes, é uma delícia. Mas, tem limites. A maior novidade pós-contemporânea é ser ateu. E todo mundo quer. Com todo respeito àqueles cuja convicção, dentro ou fora de moda, é louvável, temos de convir que não há tranqüilizante mais eficaz que estar certo da nossa espiritualidade. Está bem, esta é uma questão relativa, mas o que me impressiona é aonde pode chegar e até onde pode nos levar a moda. .: E não é só isso. Se é inquestionavelmente tosco submeter as crenças aos modismos contemporâneos, que dirás sobre sair por aí arreganhando os lábios para falar o que não se sabe? Já ouvi dizerem que ser ateu é “não ser católico, nem nada disso...”. É certo que um dos sinônimos de ateísmo para o dicionário é heresia. Mas não nos atenhamos a restritos sentidos das palavras; procuremos conhecer todas as suas conotações, para imaginar o máximo possível de efeitos que elas causarão. .: O Aurélio, sem dúvida, é utilíssimo e de uma respeitabilidade inquestionável. Se ele diz que ateu é herege, não deixaria de examinar a palavra por todos os seus âmbitos. É o próprio Aurélio que atribui a ateu o sinônimo ímpio, isto é, incrédulo, desprovido de fé. Ou pior: que denota ou envolve impiedade: guerra. .: É quase consenso global que de guerra já chega. E não vou me ater a essa questão, afinal, não estou falando do indiscutível. Quanto aos incrédulos, àqueles que não têm fé, desafio-vos. Quem consegue não acreditar em nada? A quem é possível viver sem crer que, para a própria vida, existe uma razão, ou muitas? Aos suicidas? E a eles, é possível viver? .: Não se precisa de fé apenas para mover montanhas. Que ateu consegue levantar de manhã cedo, sem pachorra, sabendo de todos os cansativos e entediantes afazeres cotidianos que o esperam? Quem consegue ser tão ateu, a ponto de recorrer a si mesmo em situações semelhantes àquelas três que citei agora a pouco? Quem é ímpio a ponto de não se apaixonar para acreditar que vai durar a vida toda? .: É tão fácil sair por aí dizendo tudo o que se ouve falar, quanto entrar em contradição. Se duvidar, são esses mesmos ateus que enchem nossos ouvidos por aí – especialmente aqui em Brasília – dizendo, para todas as ocasiões (inclusive para os casos de não se ter mais o que falar), a já batida expressão “boto fé!”. Não é difícil simular situações: - E então? A gente vai ou não vai no Gates? - Gates? Não era Frei Caneca? - Não, muleque! Tá sequelado? - Pô, achei que era no Frei Caneca! - Não! É no Gates. - Boto fé... - Tu vai ou não vai? - Boto fé! (Silêncio. PERSONAGEM 1 olha para PERSONAGEM 2) - Boto fé... (PERSONAGEM 1 boceja, balança a cabeça positivamente e vai saindo de fininho, até encontrar PERSONAGEM 3, que olha pra sua cara) - E aí, belê? - Belê... - Boto fé... .: Expressões idiomáticas e vícios de linguagem à parte, acredito que sem botar fé não dá pra tocar pra frente. Se for para empurrar com a barriga o tempo todo, o máximo que se consegue é um abdômen malhado. Mas, imagina um ateu tentando mover o Everest com a pança!? Tarefa meio difícil! .: Deixando um pouco as metáforas (até por serem, às vezes, absurdas), acredito ser o extremismo um grande mal na contemporaneidade. Vivemos criticando os católicos fervorosos, as beatas e os inúmeros evangélicos pós-modernos por serem tão irredutíveis. O remédio, creio eu, nem é ser fiel à moda, nem falar o que se quer e se mal entende, nem tampouco ser adepto do outro extremo. Buscar um bom estado de espírito, procurar o nosso aprimoramento conforme ser espiritual, zelar pela boa convivência, estabelecer metas e crer nelas são atitudes dignas de quem sempre busca o melhor. E desculpem-me os ímpios, para isso, precisa-se de fé. E muita. * Trechos entre aspas retirados da música "Telegrama" de Zeca Baleiro. Essa crônica é tarefa de Oficina de Texto 1, matéria lá da UnB. .: Sejam menos ateus! :) :. Abraços e comentem. |
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