21.9.06

.: Descontexto :.

Esse texto é dedicado à Rodoviária do Plano Piloto de Brasília.

Era um lugar perfeito para os meus planos. Não que soasse como um paraíso, em que todos os sonhos é possível realizar, tampouco tivesse um cheiro bom, um asseio ideal, uma combinação de cores agradável para os olhos. Fedia a xixi, tocava música que, para mim, soava como uma furadeira às 11 da noite. As pessoas e os ônibus iam e viam num corre-corre incessante, somavam um barulho desagradável, um zunido alto e quase constante, daqueles de doer os ouvidos. Para escutar a própria voz, era preciso alterar o tom das cordas vocais e competir com os auto-falantes.

A perfeição da rodoviária estava em seu ar descompromissado, em conflito com os compromissos que passavam por todos os lados: nos carros indo e vindo pelos arredores, nas cabeças dos pedestres-passageiros, passageiros-pedestres. Estava no cheiro de xixi em perfeito equilíbrio com a oleosidade dos pastéis, nas escadas rolantes que ora subiam, ora desciam, ora paravam de funcionar. A perfeição estava na vida louca, em contraste com rostos pacatos e atentos, descendo e subindo e descendo e subindo e andando em linhas retas e tortas.

Nenhum outro lugar podia ser melhor. Pessoas das mais distantes localidades do dê-efe e do entorno passavam por ali, encontravam-se sem se notar, umas sem olhar bem para as outras, algumas olhando-se loucamente. Uns paravam para apanhar no chão objetos que, porventura, houvessem deixado cair. Outros seguravam seus pertences com força, para evitar ter que parar. Alguns iam, calmamente, cambaleando, quase dormindo, arrependidos por ter acordado. Outros, entristecidos, lamentavam-se por não ter podido dormir. Quanto mais a observava, mais me parecia a rodoviária o lugar ideal, porque para um lugar como aquele, nem havia regras para seguir, nem contexto em que se encaixar.

A Rodoviária do Plano Piloto era, afinal, uma coisa estranha, que causava em mim um vazio gigante, uma espécie de náusea, sucessivas ânsias de vômito, que não passavam de ânsia. Era como se ali todos estivessem descontextualizados, até mesmo os que faziam do espaço um lar. Eu estava descontextualizado, o que me dava enorme prazer.

Aquilo era sensacional! Naquilo consistia a perfeição. Minhas náuseas causavam uma confusão de sentidos: sentia o cheiro de xixi como se fosse gosto, ouvia o barulho quente do café, como se fosse som. As capas das revistas e dos jornais tocavam-me os olhos, e a poluição visual me acariciava. Sentia-me como se flutuasse e tinha, a todo tempo, vontade de correr. Mas as minhas pernas não obedeciam à cabeça, pareciam dançar sozinhas. E eu ia flutuando, flutuando, flutuando. Até que caí.

(...)

Acordei no dia seguinte, com as marcas do cinturão em meu corpo. Com esforço, lembrei do rosto furioso do meu pai, que me havia espancado incansavelmente. Nem lembrava o que havia feito de errado, nem conseguia entender muito bem onde estava, porque estava ali. Havia morrido? E a Rodoviária? Esforcei-me pouco mais. A cabeça doeu... Com muito esforço, aos poucos, lembrei, e então pude entender: a cola, sim -- não a rodoviária --, fazia-me flutuar.